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O Vampiro e Outros Contos – Cap.4

Michelly Gassmann Autora

Raquel – Parte 1, Dever Cumprido

Ele a conheceu logo que chegou à cidade. Estava viajando há dias sem se alimentar, sua sede começava a se tornar insuportável. Chegou de madrugada, e vagava pelos subúrbios procurando um lugar para descansar durante o dia quando ouviu gritos há uma certa distância. Identificou a origem do som vindo de algum lugar entre as árvores de um parque.

Decidiu averiguar mais de perto, mas deteve-se ao perceber a aproximação de uma viatura de polícia. Uma policial desceu do veículo e correu na direção do som. Santiago a seguiu com os olhos enquanto ela corria de arma em punho. Alguns metros à sua frente, um homem subjugava uma mulher jovem contra uma árvore, tentando ao mesmo tempo tirar sua roupa e impedi-la de gritar.

Ao perceber a aproximação da policial, ele a soltou e correu na direção oposta. O carro de polícia passava por acaso, em sua ronda diária. A policial o perseguiu. Santiago decidiu seguir a ação a uma distância segura, quando de repente ouviu o grito sufocado da policial. Ela alcançou o homem em um beco, mas o suspeito conseguiu tirar a arma de sua mão e estava estrangulando-a.

Santiago reagiu instintivamente. Em um instante tinha uma das mãos firmemente ao redor do pescoço do criminoso, forçando-o a soltar a mulher quase sem esforço da sua parte. O homem não teve tempo de gritar ao vê-lo, seus olhos se esbugalhando de medo. Ele tinha um corte no supercílio, o que distraiu Santiago. O cheiro do sangue era tão intenso, e ele estava com tanta sede que se esqueceu completamente da policial aos seus pés.

Cego pela sede, cravou os caninos sobre a jugular pulsante, tomando o sangue quente do homem enquanto ela se arrastava em direção à parede oposta e assistia tudo. Quando terminou e finalmente largou o saco de ossos e carne do estuprador sobre alguns sacos de lixo, foi que ele se deu conta dela.

Seu primeiro instinto foi fugir dali. Mas quando olhou em seus olhos ele não viu medo, nem pavor, nem repulsa. Não viu nenhum sentimento para o qual estaria preparado. Ela o observava com a expressão mais peculiar, quase sorrindo. Estava arfante, mas seus olhos demonstravam alívio e gratidão. Curioso com aquela reação inusitada, Santiago perguntou a ela:

– Não tem medo de que eu faça com você o mesmo que fiz com ele?

– Já teria feito se o quisesse. – respondeu ela.

– Como você pode ter certeza? – questionou ele. Ela nunca respondeu.

Muito tempo depois Santiago argumentaria com Raquel que ela havia sido extremamente estúpida. Ele poderia tê-la matado em dois segundos. Poderia, mas não faria, porém não havia como ela saber disso. Qualquer ser humano normal teria pensado que iria morrer. Talvez o estrangulamento incompleto tivesse deixado o cérebro dela sem oxigênio por muito tempo. O fato é que a tranquilidade dela o deteve. Ele ficou genuinamente curioso.

Ela se levantou de onde estava e deu dois passos em sua direção, parando para apanhar a arma que estava jogada no chão. Ela não tirava os olhos dele, como se achasse que iria sumir se o fizesse. Com a arma pendendo em uma das mãos, ela parou e o avaliou. Estava reparando no estado das suas roupas. Estavam imundas e rasgadas em vários lugares. Deplorável. Havia dias que ele não parava em nenhum lugar por tempo suficiente para roubar roupas limpas. Seus pés estavam descalços, o cabelo sujo. Ela olhou em seus olhos e disse simplesmente:

– Obrigada.

Santiago não respondeu. Esperava alguma reação dela que o fizesse sair correndo dali como, por exemplo, se ela fizesse menção de atirar, ou se ao menos pensasse nisso. Não que fosse fazer qualquer efeito, mas lhe daria um motivo para ir embora. Concentrou-se em seus pensamentos, mas não encontrou neles qualquer sinal de antagonismo. Ao invés de atirar ou fugir, ela perguntou:

– Onde você mora? Tem algum lugar para onde ir?

Santiago ficou perplexo. Qual pessoa, tendo intactas suas faculdades mentais faria uma pergunta dessas para um ser como ele? Ele começava seriamente a duvidar de sua sanidade mental. Ela por outro lado, tomou seu silêncio como uma negativa e o convidou para dormir em sua casa.

Talvez tenha sido por mera curiosidade, ou por falta de opção. Ou talvez Santiago estivesse desesperadamente cansado o suficiente para considerar a oferta. Independentemente da razão, ele aceitou.