Raquel – Parte 2, Passagem do Tempo
Cinco anos se passaram desde aquela noite, quando Santiago passou a morar com Raquel, no porão de sua casa. O lugar era perfeito. Frio, úmido, com apenas uma minúscula janela por onde ele verificava se era dia ou noite.
Ao abrir os olhos em um dia qualquer, ele se sentiu como sempre contente por estar em Londres. Mais um dia nublado. Melhor dizendo, tarde nublada. Na noite anterior ele havia perseguido um suspeito durante várias horas, aguardando o momento perfeito. Conseguiu pegá-lo quase ao amanhecer. Não foi uma das melhores caçadas, não era nenhum sujeito brilhante. Apenas um viciado imbecil, como tantos outros.
Sua motivação para pegá-lo não era a lista de sete latrocínios. Apenas o último assassinato lhe chamou a atenção. No mais recente, ele não se contentou em levar a carteira da vítima. Atirou duas vezes na cabeça do homem, que não havia esboçado nenhuma reação. Matou-o na frente de seus dois filhos. Não fosse por este último crime, ele nem estaria em sua lista. O sangue tinha um gosto químico, ácido, fácil demais de pegar. Patético, mas não incomum.
Neste dia, ele decidiu esperar no porão até Raquel chegar. Queria saber se ela tinha novidades a respeito de um assassinato ocorrido duas noites antes. Ela suspeitava de um crime ritualístico, mas não havia ainda compartilhado com ele todos os detalhes. Ele precisava de pistas, algum lugar onde começar. Ler pensamentos era decisivo para o seu julgamento, mas era inviável ler os pensamentos de milhões de pessoas.
Este era um dos motivos que o mantinham perto de Raquel. Um motivo egoísta, mas era extremamente conveniente viver no porão de uma policial da divisão de homicídios. Ela facilitava o seu trabalho, ele facilitava o dela. Às vezes ele encontrava alguns criminosos e deixava que ela cuidasse deles, só por diversão. Isso o mantinha ocupado quando não estava caçando. Para Santiago só os monstros lhe interessavam. Os sádicos, os doentes, psicopatas. Em seu ponto de vista, estes não têm solução, a não ser a que ele tinha a oferecer. Os outros não passavam de treinamento. Prática para o que importa.
Ela chegou cedo. Ouviu quando estacionou o carro na garagem, fechou a porta do carro e caminhou até a porta. Deixou a chave cair. Sinal de que estava distraída. O caso devia ser interessante. Antes que ela chegasse à cozinha Santiago já estava lá. Ela o cumprimentou com um meio-sorriso:
– Oi, Santiago.
– Dia ruim? – perguntou, notando o tom de voz cansado e abatido.
Ela não respondeu de imediato. Abriu a geladeira e retirou algumas verduras, pão e frios.
– Mais um corpo foi encontrado. Os mesmos sinais. – respondeu finalmente Raquel.
Ele já havia lido nos pensamentos dela, mas preferia que ela contasse os detalhes.
– Por que não está na delegacia investigando o caso? – perguntou ele, curioso.
– Porque não há o que investigar ainda. O resultado da primeira autópsia não ficou pronto e a segunda só será feita amanhã pela manhã. – O tom de frustração na voz dela era evidente.
Santiago esperou até ela terminar de comer para questioná-la. Gostava de aproveitar estes momentos para observá-la. Raquel era o único ser humano que ele pôde observar por um período maior do que uma semana desde que acordou para esta vida. No rosto dela ele via a passagem do tempo. O cabelo crescendo, as linhas de expressão se tornando mais acentuadas.
Ela não havia mudado muito nos últimos cinco anos, ao menos para olhos humanos. Ele no entanto, via cada mancha e linha de expressão surgindo em sua pele, cada fio branco que começa a querer aparecer e que ela teimosamente arrancava ou cobria com tintura. Uma briga inútil contra o tempo, adiar o inadiável. Em cada um destes sinais, ausentes em seu corpo imortal, ele experimentava o tempo, a cada instante.
Ela se acalmou finalmente, depois de um sanduíche comido às pressas. Ele retomou o interrogatório.
– O que encontraram? – perguntou. Não havia necessidade de explicar do que ele estava falando.
– Outra adolescente. Foi encontrada no parque Battersea. Cena do crime idêntica à anterior. Tome, veja você mesmo.
Raquel retirou o celular de dentro da bolsa, abrindo o aplicativo de fotos e selecionando uma em particular. A mulher estava seminua sobre as folhas do parque. O assassino havia desenhado um pentagrama sobre o peito, usando um objeto cortante. O ferimento mortal, porém, era no pescoço, cortado horizontalmente e de forma metódica.
– Alguma pista do assassino? – perguntou ele, devolvendo a foto.
– Nada ainda. Sem o resultado da autópsia vai ser difícil começar.
– Os dois corpos ainda estão no necrotério? – quis saber ele.
– Sim. E se você tiver intenções de entrar lá, sugiro que o faça após as onze horas. Fica bem mais tranquilo. Use a entrada de sempre.
Ele assentiu, e ficaram em silêncio novamente. Os pensamentos de Santiago de desviaram para a fotografia e as informações obtidas até o momento. Não estava prestando atenção aos pensamentos dela.
– Você está com uma aparência boa hoje. Como foi a caçada de ontem? – disse ela, no tom displicente de sempre.
Sempre o intrigava o fato de ela não se importar com a sua “dieta”. Pelo contrário, ela demonstrava interesse pelos seus hábitos noturnos, além de ajudá-lo a encontrar os “escolhidos”, como ela dizia.
– Foi fácil. Fácil demais até. Nada especial, mais um viciado. – Respondeu ele, se esquivando de entrar em detalhes.
Ela assentiu e não procurou prolongar o assunto. Ela estava novamente fazendo um esforço para refrear certos pensamentos, escondê-los dele. Sempre que isso acontecia, ela saía de sua presença e procurava outra coisa para fazer. Como ler, por exemplo. Qualquer coisa que ocupasse sua mente.
Santiago não a questionava, nem podia culpá-la. Imaginava o quão difícil deveria ser não ter privacidade dentro da própria mente, e isso o incomodava às vezes. A maior parte do tempo ele desejava não poder ler a mente de Raquel. Não havia praticamente nada que ela conseguisse guardar para si.