Santiago – Parte 2, Aceitação
Com o passar dos dias percebeu que seu esforço era inútil. Não havia em seu corpo pulsação, circulação ou qualquer outro sinal de vida a ser extinguida, não conseguia deixar de ser o que era. Estava fraco, desesperado de sede, impregnado pelo odor pútrido de morte à sua volta, mas ainda existia, ainda tinha consciência.
Foi quando sua mente começou a clarear, começou a aceitar a absurda realidade. Contra toda lógica ele ainda existia. Claramente não podia morrer, tampouco poderia passar a eternidade dentro de um túmulo. Precisava sair dali, alimentar-se, fortalecer-se. Por algum resquício de humanidade, uma lembrança guardada em um filamento de dna, sabia que precisava achar um meio de fazer aquilo sem culpa, ao menos tanto quanto fosse possível.
Naquela mesma noite, ele saiu do túmulo fétido e escalou a torre do sino da igreja. Escondeu-se no alto da torre, vigiando. Concentrava sua impressionante audição em todos os sons possíveis, principalmente nas vozes. Lá do alto, via toda a cidade, todos os telhados imundos e as pessoas que andavam pelas ruas, despreocupadas.
Não demorou muito para perceber que havia vozes de fundo, como sons em segundo plano. Ele levou algum tempo para compreender que aqueles sons eram os pensamentos daqueles míseros mortais, que ele era capaz de ouvir apenas se se concentrasse em um som por vez.
A partir desta descoberta, a resposta às suas inquietações tornou-se muito clara, óbvia até. Ele poderia escolher suas vítimas baseado no que ouvia em suas mentes. Em poucos dias ele já conhecia a mente de cada morador do vilarejo. Não se surpreendia mais com seus pensamentos sórdidos e egoístas, menos ainda com a hipocrisia e a incoerência que havia entre o discurso falado e aquilo que era ouvido apenas por Santiago.
Traçou seu plano, aprendendo logo a não ter pena da maioria daqueles mortais. Muitos realmente mereciam morrer, alguns mais do que os outros.
Santiago ficou em dúvida quanto à sua primeira escolha, mas não podia esperar mais. Estava ficando preocupantemente mais fraco e sedento a cada dia. Fez uma escolha não muito usual, mas da qual jamais se arrependeu. Quanto mais ele ouvia os pensamentos do pároco mais ele tinha certeza de que faria um favor ao vilarejo ao alimentar-se dele.
Um homem vazio de fé, arrogante, mesquinho e sobretudo, irremediavelmente pedófilo. Ele tentava refrear seus impulsos monstruosos há muito tempo, lutando contra os próprios desejos. Mais ou menos como Santiago. E assim como ele, estava perdendo a batalha, não podia conter-se por muito mais tempo. Seus pensamentos desviavam-se cada vez mais para um dos coroinhas. Ele planejava o momento, desejava-o. Era uma questão de dias.
Santiago sentia-se menos monstruoso quando ouvia seus pensamentos libidinosos. Tomou então sua decisão, assegurando sua presa quando se retirava para seus aposentos. Santiago saiu de seu refúgio no alto da torre ao cair da noite. Camuflou-se entre as sombras dos corredores da igreja até certificar-se de que estavam sozinhos. Observou sua vítima por alguns instantes, vendo como desfrutava a solidão intoxicando-se com o vinho da comunhão na sacristia. Santiago podia tê-lo surpreendido enquanto estava ali, sentado indefeso à mesa, esvaziando uma garrafa de vinho tinto como se fosse água, mas não quis fazê-lo. Queria olhar em seus olhos primeiro.
O padre pousou o cálice sobre a mesa uma última vez e dirigiu-se às escadas em caracol que levavam aos seus aposentos, dois andares acima. Com uma das mãos segurava um candeeiro, a chama tremeluzindo a cada passo incerto. Com a outra mão apoiava-se na parede, ofegante com o esforço. Para Santiago, que aguardava pacientemente na penumbra do quarto minúsculo, a lenta e cambaleante subida pareceu levar uma eternidade.
Ao abrir a pesada porta, o padre não o viu de imediato. Foi somente quando Santiago deu um passo em direção à janela aberta que ele se deu conta de que não estava sozinho. Seus olhos encarnados pelo álcool encontraram um par de olhos muito brilhantes iluminados pelo luar que o fitavam sem piscar, surgindo de dentro da escuridão para devorá-lo. Santiago sorriu, deixando que ele visse o reflexo da chama do candeeiro em seus caninos brancos como agulhas de porcelana reluzindo sobre lábios exangues. Se fosse humano, ele estaria salivando com antecipação, ávido pelo banquete iminente.
Uma rajada de vento frio adentrou o aposento, provocando um calafrio que o fez soltar o candeeiro no chão com estrondo. Mergulhou na escuridão, acreditando que o próprio Lúcifer havia deixado o reino das sombras para reclamar pessoalmente sua alma. O padre sentiu os joelhos cederem ao mesmo tempo em que o coração disparava, batendo com força ensurdecedora, fazendo o sangue correr com fervor em suas veias. Levou a mão direita automaticamente ao crucifixo que pendia de uma corrente em seu pescoço, balbuciando uma tentativa desesperada de prece que não teve tempo de formular. Santiago o alcançou antes que ele pudesse chegar ao chão.
O sangue dele nem era tão bom assim. Muito alcoólico. Santiago não tomou todo o sangue, jogando o corpo pela janela aberta. Pela manhã, a beata que chegava à igreja para confessar pecados imaginários aos pés do pároco foi a primeira a encontrá-lo. Bateu em todas as portas vizinhas até todo o vilarejo ouvir a notícia e acudir aos pés da torre. A massa mole de ossos quebrados e o sangue seco que sobrou espalhado no chão manteve os curiosos a uma distância segura. Ninguém reparou nas marcas dos caninos em seu pescoço.
Isto foi nos primeiros dias, mais de trezentos anos atrás. Muita coisa mudou no mundo desde então. As cidades cresceram, assim como os crimes. Raramente é necessário recorrer aos padres para alimentar-se hoje em dia. Não faltam assassinos, estupradores e toda sorte de psicopatas para saciar sua sede. A única coisa que não mudou, além do seu corpo imortal, foi sua sede. O que mudaram foram os meios que Santiago passou a utilizar, adaptando seus métodos aos novos tempos.
A Londres moderna já não abriga mais monstros como antigamente, não mais do que qualquer outra grande cidade. Santiago sentiu-se atraído por esta cidade pela primeira vez em 1891, pelos rumores de um assassino cruel. Jack o Estripador era um homem difícil de ser apanhado, mas não para Santiago. É verdade que ele demorou alguns dias a localizá-lo, pois a cidade já era muito populosa naquela época, mas assim que o encontrou não teve dúvidas quanto à sua culpa.
Jack tinha pensamentos muito peculiares. O prazer que ele sentia ao matar as prostitutas… Sua sede era comparável à de Santiago. Obcecado, focado, metódico, sádico. Santiago o pegou quando saía para fazer uma nova vítima. O sangue dele tinha gosto de láudano, muito pior do que o do padre. O efeito do ópio demorou mais a passar.