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O Casarão de Esquina

Michelly Gassmann Autora

Quando aproximei o carro em frente ao casarão de esquina, senti-me imediatamente impactada. Conferi novamente o endereço para ter certeza. As luzes da rua começavam a se acender naquele fim de tarde, os últimos raios dourados do entardecer adicionavam ao casarão uma camada extra de surrealismo urbano. O muro externo era baixo e servia de apoio para uma grade branca de ferro fundido que parecia existir com o único propósito de adorno. Um portão duplo arqueado encontrava-se aberto, convidativo. Atravessei-o incerta, observando as muitas estátuas angelicais que guardavam a fachada branca em art déco do sobrado.

Entrei pela porta principal apreensiva pelo silêncio e pela ausência visível de alunos. Eu não estava preparada para uma escola de música vazia e silenciosa. Não se ouvia nenhum ruído à distância, nenhum ressoar de teclas dedilhadas ou cordas vibrantes. Nenhum sussurro ou lamento além do farfalhar da brisa que eventualmente encontrava seu caminho através da porta principal. No entanto, atrás do balcão de madeira maciço da minúscula recepção eu podia ver cartazes e panfletos que indicavam que eu estava no endereço correto.

Apurei os ouvidos na esperança de detectar algum sinal de vida. Por fim, o silêncio foi quebrado pelo som de passos apressados à distância. Alguns segundos depois o som veio acompanhado do aroma doce e enjoativo de colônia masculina aplicada com afetação. O dono dos passos e do odor materializou-se em seguida. Uma figura baixa e franzina, ostentando um cabelo ralo e um bigode fino que parecia desenhado com um pincel, acentuando de alguma forma um maxilar de traços delicados.

Um sorriso acolhedor se abriu no rosto pequeno do homem, atenuando momentaneamente minha tensão. Ele se apresentou com modos amáveis e um aperto de mão firme, de dedos finos levemente pegajosos. Chamava-se Sizenando. Ele conferiu meu nome em um caderno sobre o balcão e me pediu para acompanhá-lo até o local da aula.

Atravessamos um amplo salão com pé direito duplo e sem janelas. O chão era completamente coberto por tapetes persas puídos que pareciam estar ali há muitas décadas. As paredes laterais exibiam vários quadros enfileirados, emoldurados em estilo barroco e limitados pela boiserie. Na parede dos fundos, apenas uma peça de tapeçaria levemente desbotada ocupava o amplo espaço. A ausência do som de nossos passos, abafados pela tapeçaria, somado à tênue e amarelada iluminação fornecida por dois lustres de cristal que pendiam do alto teto produzindo sombras difusas, me levaram a crer que em algum momento eu deveria ter cruzado um portal que me transportara ao passado ou a outra dimensão. Senti novamente o palpitar de meu coração. 

Do lado esquerdo da sala ficavam as escadas que levavam ao piso superior, e do lado direito havia uma espécie de elevador muito pequeno e com aparência igualmente ancestral. Deixei-me guiar pelos degraus de madeira estreitos cobertos por uma passadeira gasta, seguindo o rastro de perfume doce que pouco a pouco me deixava enjoada e levemente entorpecida. Subi os degraus hesitante, segurando a respiração e o corrimão enquanto a curiosidade lentamente se transformava em medo.

Os degraus rangeram uma última vez sob nossos pés quando alcançamos finalmente o patamar superior. Havia uma porta aberta à nossa direita, onde fui convidada a entrar.

Quando entrei na pequena sala de música, reparei primeiramente no piano vertical ao canto, nas janelas largas gradeadas, mas acima de tudo, reparei na professora de música. Uma criatura minúscula em sua cadeira de rodas, tinha a estatura de uma criança de sete anos. Magra, cabelos curtos que cobriam as orelhas de maneira proposital, e óculos garrafais. Abriu um sorriso amplo em sua boca minúscula, que às vezes expunha dentes tão pequenos quanto dentes de leite. As pernas eram curtas e arqueadas, e as mãos além de miúdas, exibiam dedos que pareciam atrofiados.

Em meio ao espanto e confusão, nem reparei que Sizenando havia se retirado e fechado a porta atrás de si, deixando-nos a sós. Sentei-me no banco ao seu lado, seguindo suas instruções e me posicionei em frente ao piano, me perguntando se aquela seria uma aula teórica. A professora Regina tomou a liderança, iniciando o questionário obrigatório a respeito de minha inexistente experiência musical.

Ao final da breve interação inicial, onde eu já não temia mais a possibilidade de ser devorada por alguma criatura misteriosa saindo das sombras de algum canto daquele casarão medieval, admirei com certo assombro e estupefação quando ela se aproximou do piano e começou a tocá-lo de maneira perfeita, com destreza e até facilidade. Os dedinhos que pareciam atrofiados moviam-se agilmente sobre o teclado, tocando delicadamente e com precisão, demonstrando ser capazes de alcançar qualquer nota. Os pezinhos curtos alcançavam sem dificuldade os pedais, sustentando ou abafando as notas nos momentos exatos. Foi somente então que eu senti minha consciência voltar plenamente ao corpo, como se atravessasse de volta o portal e caísse de volta ao tempo presente e real.

Durante um ano inteiro aprendi com a fascinante professora Regina mais do que ler partituras, posicionar as mãos ao teclado e dar ritmo às músicas. Aprendi a admirar aquele templo da arte em sua plenitude, visitando os vernissages para admirar os quadros nas aulas de pintura, acompanhando as apresentações musicais de alunos de todas as idades.

Aprendi a erguer o véu da miragem cotidiana para enxergar além das minhas próprias limitações.