Santiago, Parte 1 – Despertar
Em uma noite de outono de 1718, Santiago abria os olhos para a primeira lembrança que ficou gravada em suas retinas imortais, o teto de um celeiro. Esta era a lembrança mais antiga que possuía, seu despertar. Ele já era um homem inteiramente adulto quando acordou para esta vida, na faixa dos trinta anos, se fosse humano. Quando abriu os olhos em direção ao telhado de madeira e palha, não tinha a mínima ideia de quem era ou do que ali fazia. Uma criatura recém-nascida, sem lembranças.
Seus pensamentos começaram a adquirir forma em palavras, perguntas em sua maioria. Tomou consciência de seu corpo nu, levantando ambas as mãos em frente ao rosto e em seguida levantando levemente a cabeça, constatando que de fato possuía tronco, pernas e pés. Abaixou novamente a cabeça e voltou sua atenção para os seus sentidos.
Um cheiro de palha e estrume lhe queimava as narinas. Por algum tempo permaneceu imóvel, contemplando as maravilhas dos seus sentidos, procurando entender o mundo ao seu redor. Ficou deitado durante um tempo imensurável, olhando para o teto e apreciando cada fenda, cada detalhe das tiras de madeira que o formavam. O fato de ser noite e não haver luz artificial não fazia a menor diferença, ele podia enxergar perfeitamente. Via cada grão de poeira que se desprendia do teto e dançava pelo ar. De vez em quando algum deles era iluminado por um único raio de luar que escapava por entre as tiras de madeira, refletindo um brilho prateado hipnotizante.
Ele sentia sobre si cada fragmento de palha, cada grão de poeira, penas e detritos ressequidos que forravam o chão. E os sons! Podia ouvir o vento nas folhas de uma árvore distante, as asas de algum pássaro noturno que passava por ali, a respiração dos animais em volta dele, dentro e fora do celeiro, o som de seus corações batendo e do sangue sendo jorrado pelas artérias. Ele ouvia a inquietude deles ao perceber que um estranho, um invasor estava ali. Um pequeno roedor corria junto a uma das paredes, suas minúsculas patinhas produzindo um ruído mínimo e ritmado.
Santiago era apenas um predador no meio daquelas criaturas. Podia sentir o cheiro do medo que transpiravam. Sentia o cheiro de seu sangue, apenas levemente atraente. Como um alimento vencido, que você consome só em caso de vida ou morte. Do seu próprio corpo em compensação, não havia nada. Nem cheiro, nem sons, nem sensações comuns. Sua pele não irradiava calor, seus órgãos internos não trabalhavam, seu sangue não corria em suas veias. Não sentia calor nem frio, nem dor. Como um cadáver. Mas ele não era um cadáver, não exatamente.
Seu cérebro de alguma maneira funcionava, comandava todos os músculos e sentidos de seu corpo de maneira extraordinária. Teve plena consciência disto quando a sede começou. Ele soube imediatamente que não era uma sede comum. Ele não ansiava por um copo d’água, sua mente focalizava apenas o líquido espesso e morno, levemente doce e ferroso de sangue. A sensação era intensa, aumentando a cada segundo. Queimava sua garganta e suas entranhas, até não poder prestar atenção a mais nada, a nenhum som, nenhum detalhe, nenhum cheiro. A não ser o de sangue.
O sangue à sua volta não era bom o suficiente. O cheiro daquele sangue não o apetecia, pelo contrário, deixava-o levemente enojado. Só aumentava sua sede, até não poder mais ficar ali deitado imóvel. Em um segundo estava de pé, na porta do celeiro. Seus movimentos eram rápidos e absolutamente silenciosos, mas ele não tinha tempo para apreciá-los. Precisava apagar o fogo das suas entranhas, aplacar aquela sensação insuportável.
Olhou em volta e se achou no meio de um campo. Havia ovelhas a certa distância. Ovelhas não o interessavam. Localizou uma casa perto dali. Em instantes estava à porta. Concentrou-se por um instante nos seus sentidos. Sentiu o cheiro inebriante de sangue fresco, pulsante. Duas batidas ritmadas, dois corações adultos no andar superior. Sem ter que pensar no que precisava fazer, escalou com facilidade as paredes da pequena casa e alcançou a janela aberta. Fácil demais. Havia um casal idoso deitado na cama, dormindo profundamente.
Santiago sentiu aumentar o fogo dentro de si. A sede rapidamente o cegava. Em um único movimento quebrou os pescoços dos dois humanos como se fossem gravetos. Tão rapidamente que nem chegaram a emitir nenhum som. Santiago tomou o sangue dos dois enquanto ainda estavam quentes. A sensação era incrível. O sabor do sangue quente em sua boca, o fogo que se apagava rapidamente. A sensação era simplesmente espetacular. Ele não conseguia parar de sugar e beber, até não restar mais nada para sugar.
Quando terminou, deteve-se ao lado da cama por um segundo. A sede desesperadora havia acabado, ele estava satisfeito. Havia um armário a um canto do cômodo. Avaliou o conteúdo rapidamente e extraiu algumas peças de roupa masculina. Apesar de não precisar, sentia-se mais confortável vestido. Só então virou-se para ir embora, mas antes de alcançar a janela, olhou para os corpos inertes sobre a cama. Pálidos, exangues. As cabeças pendendo em ângulos estranhos sobre os pescoços esmigalhados. Uma monstruosidade.
Sentiu o desespero voltar, mas desta vez não estava relacionado à sede. Naquele momento ele percebeu que era um monstro, uma criatura bestial. Sentiu vontade de gritar, mas o urro que lhe escapou era terrível como de uma fera selvagem. Precisava fugir dali, então pulou a janela e correu.
Correu sem direção, sem propósito, sem ter a menor ideia do que estava fazendo. Correu até o sol nascer. Não sentia cansaço, nem dores nas pernas, nem falta de ar. Não sentia necessidade de parar, até surgir o sol. Quando os primeiros raios de sol o alcançaram, sentiu-se enfraquecer pela primeira vez. Sentia-se cansado, repentinamente sem forças. Precisava parar. Estava em um vilarejo, no meio de uma praça. Havia uma igreja em frente, e atrás da igreja havia um cemitério. Correu em sua direção e enfiou-se dentro de um túmulo recente, esmagando os ossos do corpo que o ocupava previamente.
Durante dias ficou ali, ignorando o cheiro fétido de podridão que aumentava a cada hora, fingindo não sentir os vermes que se alimentavam do cadáver abaixo de si, desejando se tornar ele próprio o cadáver. A sede voltou eventualmente após alguns dias, mas ele a ignorou enquanto pôde, desejando morrer, secar. Queria que o fogo de suas entranhas o incinerasse. Durante este tempo teve apenas um pensamento: a imagem de suas vítimas. Ele era um assassino.